quarta-feira, 10 de julho de 2024

Faroeste caboclo

 


A primeira cidade-satélite de Brasília começou com a tomada de posse de um terreno perto da entrada da Cidade Livre. Já descrevi as causas de tais ocupações. Chegaram a um auge nas primeiras semanas de junho de 1958, quando, em poucos dias, entre 4 mil e 5 mil flagelados da seca do Nordeste chegaram à Cidade Livre em busca de trabalho. A Novacap ordenou às forças de segurança (o GEB) que levantassem barreiras na estrada para impedi-los de entrar. Em vez de irem embora - como se tivessem algum lugar para onde ir -, esses migrantes desesperados iniciaram uma ocupação de terra, montando um acampamento improvisado do outro lado da barreira. (HOLSTON, James. A Cidade Modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. Tradução Marcelo Coelho, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.)
https://cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=77&

Taguatinga desenvolveu-se especialmente em função do comércio e dos empregos que sua população obtinha. Tornou-se um importante centro comercial dentro do Distrito Federal e polo de atração para a população das cidades próximas, abrigando shopping centers de grande porte. Taguatinga, atualmente, é uma das regiões mais ricas do Distrito Federal, sendo considerada a capital econômica do Distrito Federal. (WIKIPEDIA, “Taguatinga (Distrito Federal)”, 29-03-2024.) 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Taguatinga_(Distrito_Federal

A apuração dos motivos de Taguatinga, dentre todas  as cidades-satélites, ter se tornado "a capital econômica do Distrito Federal" demanda algum tempo de leituras e outro tanto de reflexão. Talvez por ter sido a primeira, talvez não. 

As imagens do Google Map parecem confirmar o verbete da Wikipedia: Taguatinga, criada como loteamento imposto 'na marra' pelos retirantes alojados na periferia da novíssima capital da República, hoje concentra boa parte do mercado não subsidiado de apartamentos novos do DF, de classe média e média-alta por definição.

Focado no nascimento das metrópoles capitalistas no Brasil (1870-1930), deixei Brasília para estudar depois. Mas a celeuma em torno do novo Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília – PPCUB não está nem aí para a minha agenda: ela coloca na ordem do dia do urbanismo brasiliense e brasileiro a relação entre o plano de urbanismo e a urbanização de mercado.

Não posso nem pretendo opinar sobre o PPCUB, mas temo que a indulgência histórica da nossa profissão com a alienação constitutiva do urbanismo modernista em face da urbanização de mercado nos deixa de calça curta para enfrentar a questão - o que dá certa vantagem aos  especuladores imobiliários, cada vez mais bem servidos de advogados treinados na defesa da liberdade de mercado em nome das “cidades sustentáveis e inclusivas". O melhor exemplo, como de hábito, vem da Caos Planejado:

“Brasília precisa superar o planejamento urbano do século 20, pensado para automóveis, com a criação de bolsões de estacionamento, viadutos e segregação de usos, e começar a se adequar ao planejamento urbano do presente, pensado nas pessoas, com a criação de praças de qualidade, ciclovias, setores de uso misto e ruas caminháveis. Esse é o modelo de cidades inovadoras e de sucesso que atraem investimentos, prosperam e promovem a qualidade de vida de toda a população, não de apenas uma parte dela.” “Preservar o urbanismo de Brasília: as escolhas e seus preços”. Caos Planejado 27-06-2024, por Thiago Caldeira.  
https://caosplanejado.com/preservar-o-urbanismo-de-brasilia-as-escolhas-e-seus-precos/

Alega o articulista que a área metropolitana de Brasília recebe cerca de 45 mil novos habitantes por ano e se pergunta: onde essa nova população vai morar se "não há oferta de moradia crescendo nessa velocidade no Plano Piloto, que é limitado pelo tombamento"? Em defesa do adensamento central reiteradamente patrocinado pela Caos Planejado e adotado pelo PPCUB, ele mesmo responde, consternado: "nas áreas mais distantes, onde são maiores os desafios da mobilidade urbana!"

Contudo, digo eu, se nos lotes do Trecho 4 do Setor de Clubes Esportivos Sul (SCES) liberados pelo PPCUB para a construção de 9 mil apartamentos caberão 27 mil pessoas - suficientes para fazer saltar o valor dos terrenos de R$150 milhões para R$1,4 bilhão em benefício, dentre outros, do presidente da Associação de Empresas do Mercado Imobiliário do Distrito Federal (ADEMI-DF) [*] -, a pergunta continua sendo onde vão morar os demais 423 mil novos habitantes da área metropolitana de Brasília nos próximos 10 anos, senão "nas áreas mais distantes, onde são maiores os desafios da mobilidade urbana"? 

Como farão os nossos paladinos do "planejamento urbano do presente, pensado nas pessoas, com a criação de praças de qualidade, ciclovias, setores de uso misto e ruas caminháveis" para "promover a qualidade de vida de toda a população [450 mil novos habitantes], não de apenas uma parte dela [27 mil habitantes]"? 

Eu respondo: considerando a realidade da pirâmide social brasileira e a maneira como o mercado aloca os demandantes de terra-localização nas metrópoles de todo o mundo - lição sintetizada pelo insuspeito William Alonso em 1964 [**] -, a imensa maior parte dessa nova população, com ou sem o PPCUB, não terá escolha e pagará o preço que sua antecessora já paga há muito tempo: residir na periferia mais ou menos distante e enfrentar diariamente "o desafio da mobilidade". 

E ainda que o PPCUB privatizasse boa parte da área pública do Plano Piloto, a imensa maior parte da terra só seria liberada a conta-gotas, para pagadores de rendas compatíveis com as expectativas dos especuladores.

Em suma, o "modelo de cidades inovadoras e de sucesso que atraem investimentos, prosperam e promovem a qualidade de vida de toda a população, não de apenas uma parte dela” de que fala nosso articulista é, no Brasil, no melhor dos casos miragem, no pior charlatanismo. Oportunismo, com certeza.

Dado o estatuto histórico-cultural do Plano Piloto, parece-me evidente que especular com o seu adensamento não é um ponto de partida sério para o planejamento da expansão de Brasília. As cidades-satélites, seus subcentros, periferias e redes de conexões recíprocas e com o Plano Piloto é o objeto a ser trabalhado, inclusive do ponto de vista da urbanização de mercado.
 
2024-07-10


PS: Esta matéria do Metrópoles de 10-07-2024 mostra que o plano de adensamento do Plano Piloto aprovado pelo PPCUB é muito mais ambicioso do que eu supunha. Caso ele seja mantido, eu sugiro um experimento: observar, ao longo da próxima década, que proporção dessas terras serão destinadas pelos empreendedores ao atendimento da demanda estimada dos 45 mil / ano novos habitantes da metrópole.      
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[*] “PPCub: Lago será cercado por 9 mil apartamentos com até 27 mil moradores - O novo bairro às margens do Lago Paranoá e a poucos metros do Palácio da Alvorada equivalerá a 12 superquadras”. Metrópoles 26-06-2024, por Isadora Teixeira 

[**] ALONSO W (1964), Location and land use. Cambrigde, MA: Harvard University Press